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Contavam que os homens eram acordados por uma voz celestial dizendo:
— Quem quer desencantar a princesa de Bambuluá? — Viam apenas o rosto de uma moça bonita como um anjo. Só o rosto. E era esse rosto que pedia socorro.
Muitos homens corajosos aceitaram o encargo mas desistiram das provas e fugiam espavoridos e molhados de sangue. O lugar foi ficando abandonado cada vez mais. Raramente passava uma criatura humana e assim mesmo bem depressa, olho no pé, olho no mato.
Numa tarde apareceu por ali um rapaz amarelo, franzino, muito cansado e faminto e se sentou na laje sem saber o que fazer de sua vida. Surgiu o rosto da moça encantada e perguntou se ele era capaz de desencantar a princesa de Bambuluá.
— Sou, — disse o amarelo; sou homem para enfrentar o perigo, mas quero comer, beber e descansar primeiro...
— Entre para a gruta, — disse o rosto.
O amarelo, que se chamava João, entrou e encontrou uma mesa cheia de comida variada e gostosa, uma boa rede armada e um banho morno preparado. João tomou o banho, mudou a roupa, comeu e deitou-se na rede. O rosto reapareceu dizendo:
— Hoje à meia-noite vai até aquela árvore que fica no alto da serra e deita-te no chão. Haja o que houver, não te levantes, não grites, não te defendas e apenas poderás rolar até aqui onde ficarás a salvamento.
João cumpriu à risca. Perto da meia-noite foi até a árvore que ficava bem longe da gruta e deitou-se. Logo depois viu três vultos mascarados, cobertos com umas capas escuras, conversando.
— Há tempos que não tropeço com gente deitada aqui, — dizia um. Outro comentava:
— Deve ter sido à custa de pau que ficamos livres.
Um deles bateu com o pé em João e gritou:
— Aqui está um embrulho! Vamos empurrá-lo! Chega o pau nele!
As pancadas, pontapés, choveram sobre o João que suportou calado e apenas, dando um jeito no corpo, começou a rolar, a rolar por cima de pedras, espinhos, galhos secos, debaixo da saraivada de golpes, dos três embuçados. Rolou, rolou, rolou, até que encostou na gruta. Imediatamente as figuras sumiram-se e João pôde sossegar, todo roxo de pancadas. A princesa de Bambuluá apareceu, já desencantada numa terça parte do corpo. Mandou preparar todo conforto para o amarelo que passou o resto da noite e o dia seguinte tomando coragem para a segunda prova.
Na noite escolhida, os três encapuzados surraram brutalmente o pobre rapaz que não deu a menor demonstração de estar sentindo maus tratos. Rolou, rolou, rolou até a gruta e os três carrascos desapareceram.
João ficou recebendo curativos nas feridas e alimentando-se convenientemente até recobrar suas forças. Finalmente, na terceira noite, as provas foram cruéis. Os três fantasmas, furiosos pela insistência do candidato, moeram-no de pancadas e sacudiram-no dentro de um barreiro cheio de cacos de vidro e espinhos. João ficou picotado como um paliteiro. Ao romper da madrugada, os três algozes fugiram como sombras. A princesa de Bambuluá estava desencantada inteiramente, dos pés à cabeça, bonita como os amores. Tratou de João e pôde curá-lo em quinze dias.
Viajaram então para a cidade vizinha e ali chegando a princesa hospedou-se na casa de uma velha professora, rica e sábia, que a recebeu como ela merecia. A princesa disse a João:
— Vou embarcar amanhã para o reinado de Bambuluá e voltarei uma vez por ano para ver você. É preciso que o meu noivo estude a língua dos pássaros e tudo quanto seja necessário para um homem importante. No fim de cinco anos creio que já estará você preparado para acompanhar-me ao reinado do meu Pai e casar comigo. Não se esqueça de mim e lembre-se que minha visita anual durará apenas algumas horas. Estude muito.
No outro dia a princesa tomou o navio e foi embora para Bambuluá deixando João na casa da professora velha que tinha duas filhas lindas. Começou o rapaz a estudar tudo, especialmente a língua dos pássaros, fazendo progressos todos os dias. A velha ensinava com afinco e como ia gostando do moço pensou que seria melhor casá-lo com uma de suas filhas do que educá-lo para a princesa de Bambuluá que bem podia escolher outro noivo com facilidade.
Quando chegou o dia da princesa fazer a primeira visita, a professora preparou uma festa mas ofereceu a João um copo de vinho misturado com dormideira. O rapaz bebeu e caiu como morto, dormindo profundamente. A princesa de Bambuluá chegou, abraçou todos e não conseguiu falar com o noivo porque este dormia a sono solto. Pela tarde a princesa voltou para o navio e seguiu viagem.
João acordou e ficou muito triste com o sucedido mas continuou estudando cada vez mais. No outro ano, no dia em que a princesa voltaria a visitá-lo, a professora tornou a fazê-lo dormir com o vinho misturado com dormideira. A princesa olhou muito o noivo mas não pôde despertá-lo. Assim se passaram os cinco anos. A princesa de Bambuluá estava certa de que João não a queria, não estudara coisa alguma, vivendo nas festas. Tudo isso era dito pela professora velha. Na data da princesa vir, João, desconfiado, ficou de sobreaviso mas a princesa não veio. A professora disse que a princesa de Bambuluá era uma ingrata e que João devia casar-se com uma de suas filhas, moças prendadas e bonitas. João recusou, arrumou o que possuía e partiu.
Caminhou pela praia do mar muitos dias. Numa tarde deparou uma casa solitária e bateu palmas, chamando o dono. Depois de muito bater, ouviu uma voz macia, muito baixa, mandando que ele entrasse. João penetrou até a cozinha e viu um velhinho encarquilhado junto do fogo. Parecia ter mais de cem anos. Tratou João muito bem e o moço contou sua história. O velhinho disse:
— Eu sou o príncipe dos pássaros. Pode ser que algum dos meus soldados saiba onde fica o reinado de Bambuluá. Vou chamá-los...
Agarrou um tamborzinho e começou a bater, a bater, a bater. O céu ficou escuro de pássaros, de todos os tipos, cores e figuras que desciam para a casa, entrando pelas portas e janelas e cercando o velho com todo respeito. Assim que viam o rapaz, partiam de bico aberto contra ele, julgando-o inimigo do príncipe. O velhinho sossegava-os com um gesto. A todos o príncipe dos pássaros perguntou o caminho para o reinado de Bambuluá. Ninguém sabia.
— Durma hoje aqui e vá amanhã perguntar ao meu pai, o rei dos pássaros, onde fica o reinado de Bambuluá.
João agradeceu muito ao ao velhinho e seguiu jornada na manhã seguinte. Andou três dias e três noites. Avistou uma casinha na encosta de um morro. Subiu, bateu palmas e encontrou um velho, tão velho, que estava encolhido, encorujado, junto do fogo. Quase não falava. Recebeu-o muito bem, deu-lhe que comer e ouviu a história toda. Depois falou:
— Vou ver se os meus soldados sabem alguma cousa... — Pôs na boca um apito de prata e apitou, apitou, apitou. Emas, nambus, jacus, tamatiões, todos os pássaros grandes, que correm mais do que voam, compareceram, precipitando-se contra João porque pensavam que ele quisesse ofender ao rei dos pássaros. O velho-velhinho aquietava-os com a mão. Perguntou a todos e nenhum soube onde ficava o reinado de Bambuluá.
— Durma hoje aqui e amanhã procure meu pai, o imperador dos pássaros. Esse deve saber...
João agradeceu muito, dormiu e continuou sua peregrinação na manhã seguinte. Andou, andou, andou. No quarto dia de viagem viu uma casinha no alto de uma serra, lá em cima, muito alvinha. Subiu com dificuldade e bateu palmas um tempo sem fim. Finalmente entrou e deparou um velho, velho, velho, tão velho que vivia dentro de uma cabaça, enrolado em pasta de algodão e suspenso em cima do fogo. Recebeu João muito bem, deu-lhe que comer e beber, mostrou uma rede armada, ouviu sua história e prometeu auxiliá-lo. Tirou da cabaça uma gaita de perna de ema e soprou um som fininho, fininho, por alguns minutos.
Assim que ele acabou, ouviu-se um barulho de asas e o céu ficou preto, preto, preto, de urubus, aos milhares e milhares, cobrindo tudo. Rodearam a casa e foram entrando o velho como a um imperador. Queriam matar a João mas o imperador fazia um gesto e os urubus obedeciam. Nenhum conhecia o caminho para o reinado de Bambuluá. O imperador mandou-os embora e virou-se para um urubu velho que estava dormindo num canto, urubu, tão velho que não tinha mais penas e sim os canhões. O urubu ouviu a pergunta e respondei, estirando as asas enormes:
— Saiba o meu imperial senhor que o reinado de Bambuluá era os meus pastos. Fui muito lá. Fica depois do Inferno. Passa-se por cima, na quentura do fogo do diabo. Logo na descida está uma campina que olhos maus não podem ver, cheia de palácios bonitos, com muita gente agradável. É aí o reinado de Bambuluá.
O imperador dos pássaros disse a João que fosse comprar um boi de cinco eras, matasse, cortasse carne, tripas, bofe, coração, fígado, rins, quebrasse os ossos e trouxesse tudo para o urubu velho comer. Dentro de três dias estaria pronto para a viagem.
João comprou o boi de cinco eras, fez tudo quanto lhe ordenaram e colocou o montão de comida na frente do urubu velho que começou a comer sem parar, dia e noite. Ia comendo, comendo, e os canhões se abriam em penas e o urubu ia ficando empenado novamente. Dois dias depois já estava pronto e deu uns vôos, experimentando as asas e a força.
O imperador dos pássaros explicou a João que montasse o urubu, segurando dois cotos de penas como se fossem fueiros, e cruzasse os pés por debaixo da asa. Fechasse os olhos, só abrindo quando o urubu parasse. Havia de sentir um vento muito quente e o urubu faria muitas voltas. Era na ocasião em que passariam por cima das bocas do Inferno. João seguiu tudo direitinho e o urubu voou alto, alto, alto, empinando acima das nuvens. Depois de horas, desceu como um raio e começou a fazer curvas como que recuando e o rapas sentia um calor tão forte que lhe dava a impressão de estar pisando em brasas assopradas.
Bruscamente o urubu voou mais alto e desceu rápido pisando em terra. João abriu os olhos e viu que estava numa campina verde, com água corrente e perto de muitas casas bonitas. No cimo de um morro estava um palácio que era uma babilônia de grande.
O urubu despediu-se e voou. O rapaz veio andando, andando, até que alcançou as primeiras casas. Na janela de uma dessas estava uma velha, muito simpática que lhe perguntou quem era e o que estava fazendo no reinado de Bambuluá. João escondeu umas partes e contou outras, e a velha mandou-o entrar e acomodar-se com sua pequena bagagem.
O rapaz estava com fome mas a velha nada tinha que lhe oferecer. Era um antiga criada do palácio do rei. Este lhe dera aquela casinha, roupa e mandava todos os dias abundante tabuleiro de comida vinda da cozinha real. Pediu que João tivesse paciência e esperasse pelo meio-dia, hora em que o almoço havia de chegar.
Para distrair-se, João abriu a bruaca, tirou um violino e substituiu as cordas comuns por umas cordas encantadas que a princesa lhe havia dado. Música tocada nessas cordas fazia toda a gente dançar. João afinou o instrumento e começou a tocar uma música tão sacudida, tão feiticeira, tão requebrada, que a velha se peneirou toda e saiu dançando pelo meio da sala. Os homens que iam passando na rua paravam para ouvir e entravam forte no bailado, balançando o corpo e sapateando como uns danados. Tanta gente passasse e ouvisse como entrava para a casa e ficava perdida no meio da dança. Ao meio-dia chegou a empregada do palácio e do meio da rua se vinha desmanchando no compasso, equilibrando o tabuleiro. Arriou-o na mesa e pulou como uma maluca.
No palácio notaram a demora da criada e mandaram outra buscá-la. Esta o que fez foi aderir ao baile com todas as forças do corpo. Mandaram uma segunda, terceira, quarta e quinta e todas se misturaram com os dançarinos, saracoteando. Finalmente a rainha com algumas damas veio pessoalmente verificar em que tanta criada estava entretida. Nem andou meio caminho e já ficou bulindo com os pés e rainha e damas largaram-se no folguedo como umas desesperadas. O rei, vendo que o palácio estava deserto e a fome o apertava sem que o almoço aparecesse, saiu com os fidalgos à procura daquele mistério. Não escapou. Voou para o brinquedo como gato aos bofes. Dançaram, dançaram, dançaram. Até que o João parou o violino e todo mundo ficou mais morto do que vivo. O rei então disse:
— Amanhã ofereço uma festa no palácio, porque depois de amanhã vai casar minha filha. Você será o tocador. Não deixe de ir senão mando-lhe cortar a cabeça.
Dispersaram todos. A princesa não deixara seu aposento e quando as criadas contaram a história do baile, ficou surpreendida e desconfiou que fosse o músico, o seu antigo noivo, que a desencantara e a quem dera as cordas mágicas e fizera educar. Enviou uma criada de confiança e quando se convenceu que era mesmo João, mandou-o chamar e tudo combinou para a festa próxima.
O noivo oficial andava todo orgulhoso, bebendo ares, sem enxergar ninguém, porque ia se casar com a filha do rei.
No dia da festa, quando o salão real ficou que não cabia uma cabeça de alfinete, a princesa saiu, bonita como uma estrela do céu, e disse, em alto e bom som:
— Rei, meu pai, rainha, minha mãe, meus senhores e senhoras! Se eu perdesse a chave da minha mala e mandasse comprar outra para abrir, e antes de servir-me da nova encontrasse a velha, que deveria fazer?
Todos responderam:
— Use a velha, princesa, não se deixam amores velhos pelos novos...
— Pois, concluiu a princesa, aqui está meu noivo antigo, que sofreu por mim os maltratos, desencantando-me e estudando para ser digno do posto, vindo até aqui só para ver-me.
E entrando, saiu trazendo João pela mão, todo bem vestido, com jóia no dedo que parecia mesmo um príncipe.
Todos os convidados bateram palmas e o rei e a rainha abençoaram o casamento que se realizou no outro dia, com tanta festa que não teve fim.
Eu estava lá e vi tudo e trouxe um boião de doce mas na ladeira do Escorrega escorreguei, caí e quebrou-se tudo...
Informante: Francisco Ildefonso (Chico Preto). Praia de Areia Preta, Natal, Rio Grande do Norte.
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986 (Reconquista do Brasil, 2ª série, 96), p.35-40)

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